terça-feira, 5 de abril de 2011

Poço do Sonho

Marta Sousa, nº16, 7ºC
Susana Lage, nº24, 7ºC


À medida que a luz do sol desaparecia e a noite voltava, os candeeiros da rua acendiam. O tempo passava e cada vez o frio era maior e eu, sem dinheiro, sem família e sem afectos, não tinha lugar onde ficar. O único lugar que me invadia a memória era a grande sala onde sonhos de milhares de pessoas se concretizaram: O Anfiteatro. Era a sala mais bonita que alguma vez se viu. As paredes estavam cobertas de camadas de tinta de cores que transmitiam uma energia inigualável. Os candelabros formavam as oito pontas de um polígono estrelado e as cadeiras tinham a cor de um vermelho morto. Era ali o sítio ideal para eu também sonhar. Pelo caminho, pessoas olhavam com caras de indiferença para comigo. Apetecia-me chegar ao pé delas e gritar-lhes bem alto que eu era alguém! E que não era menos pessoa por não ter dinheiro, amigos, família ou bens… mas pensando melhor, se calhar até era. Sentia-me mal por esta minha situação, mas como vivia assim há muito tempo, até para mim era indiferente.

Quando finalmente cheguei ao Anfiteatro, as minhas tristezas pareciam acabadas. O que se passava lá fora deixava de me magoar, e só o sonho me importava. A única coisa que se via eram as fracas luzes de presença que se situavam nos cantos da sala e o foco principal que apontava para o meio do palco. Sentei-me numa das muitas cadeiras e preparei-me para a hora mais ansiada do dia: a hora de dormir. Era aí onde eu esquecia tudo. E quando estava quase a cair no poço do sono, ouvi passos. Passos pesados e fortes. Com medo do que poderia acontecer, aninhei-me atrás das cadeiras e de vez em quando espreitava. Aparentemente eram dois homens a fugir da sociedade, com medo que alguém ouvisse a sua conversa. E eu, uma criatura perdida, pensei que talvez não fizesse mal ouvir a tal conversa. Começou então um homem a dizer:

- Luís, tens aqui toda a privacidade do mundo, e o teu segredo será guardado para sempre na minha alma. Estás a vontade. Podes começar quando quiseres, e, descansa, ninguém sabe que estamos aqui.

Que enganado que ele estava. Via-se mesmo que não fazia mínima ideia que eu estava ali, e também, se descobrisse, a minha noite passava de quentinha, confortável e descansada a fria, vergonhosa e infeliz.

- Bem, Mateus, tudo começou há praticamente um ano. Eu estava em casa, sozinho no meu mundo a pensar bem na minha vida, e decidi ir dar um volta. Saí de casa, peguei no carro e parti. Parti para um sítio bem longe, onde pudesse reflectir e descansar sem que ninguém me perturbasse, pois, como sabes, eu vivo num apartamento mesmo no meio da cidade, e já não suporto o barulho, a pressa, o stress, tudo. Então, decidi ir dar uma volta pelo Monte de São Alexandre, o sítio mais terrível para as pessoas, mas para mim, era bonito. E foi quando estacionei o carro à beira da colina, e subi. Lá bem no alto, pus-me a apreciar a vista. Reparei em cada simples detalhe da cidade. Ah, como eu adorava aquele lugar… Tanta luz, tanta beleza, tanta arquitectura… é pena o mundo aos poucos e poucos o andar a estragar sem notar - dizia o tal Luís. E eu a ouvir aquilo, estava cada vez mais confusa. Não percebia o porquê de tanto secretismo. Mas continuei sem me mexer.

- Então, quando eu estava enfeitiçado pela beleza da cidade, ouvi passos e acordei do feitiço. Olhei em redor, levantei-me e tentei perceber de onde vinha os passos – fez uma breve pausa e começou a lacrimejar – só me lembro de me virar e ver uma criatura animal a saltar na minha direcção, e a morder-me o braço. Uma dor extremamente intensa e inacreditável invadiu-me e a criatura fugiu. Eu, quase inconsciente e sem forças, caí no chão – comovida, também eu quase a chorar, e com uma enorme vontade de ver o que se estava passar, levantei-me um pouco. Reparei então que o homem que falava segurava uma mascara branca na mão e estava a chorar. Tinha o cabelo curto, uma ligeira barba e um brinco na orelha direita. E o outro tinha um caderno e estava a escrever à medida que ele falava. Percebi então que o que se estava a passar era uma espécie de entrevista. Só não percebia o tema. Mas logo me esclareci:

- Desde então, comecei a sentir, à noite, uns enormes ardores no braço, e muito calor, como se estivesse constantemente a enrolar-me em cobertores e mantas. E estes sintomas começaram a agravar-se. Até que houve uma noite de lua cheia, em que eu não conseguia dormir. E foi nessa noite que algo aconteceu. Chegou a meia-noite, eu comecei a sentir uma enorme sensação de calor no meu peito. Pior que as outras todas. Como se uma bola de fogo o estivesse a perfurar. E de repente, olho para os meus braços e vejo pelos a crescer, muitos pelos. E as minhas mãos a deformarem-se. E quando olho ao espelho, já não vejo a minha imagem, mas sim a de um lobo. E foi assim que me tornei um lobisomem – Quando ele disse estas palavras. Engoli em seco, não acreditava! Era impossível. Os lobisomens eram personagens inventadas! Mas a convicção com que o homem falava era apaixonante. E foi por isso que eu percebi que aquela história não podia ter sido inventada. Tinha que ser real. Levantei-me novamente e agora, vi já os dois homens a desaparecem na escuridão. O espectáculo tinha acabado. Eu, uma mendiga perdida no mundo, tinha nas minhas mãos umas informações valiosíssimas. Esta noite já não havia mais surpresas. Então, sentei-me na cadeira e adormeci a pensar no que poderia fazer com as informações. Eu podia mudar a minha vida. Podia ser totalmente o oposto do que sou. Podia ter uma vida melhor, mais amigos, podia ter mais valor. Eu sei que dizem que o dinheiro não traz felicidade. Mas não o ter também não. E eu já sabia o que havia de fazer.

Acordei na manha seguinte bastante cedo. Penteei-me o melhor que pude e ajeitei os farrapos que tinha vestido de maneira a não parecer muito mal. Fui à fonte do parque principal e lavei a cara. Dirigi-me então ao jornal mais próximo e pedi para falar com o gerente. Contei-lhe tudo. Tudo o que tinha ouvido na noite passada. Mas como eu esperava, ele não acreditou. Disse que eu andava a ouvir coisas e que já não sabia o que dizia. Mas na minha cabeça só passava uma coisa. Tinha de arranjar provas. Mas onde? Eu era a única pessoa, para além dos dois homens, que estava no Anfiteatro, lá não havia câmaras… ou se calhar havia. Aí estava uma coisa que eu não me lembrava. Fui de imediato para o Anfiteatro procurar alguma coisa que provasse o que eu vi e ouvi. Procurei bastante, até que encontrei o que eu tanto procurava. Uma das muitas câmaras que davam para o palco estava ligada. Estava naquela fita tudo que eu precisava. Mostrei então tudo aos jornalistas. Comecei a ser capa de jornal e o tal lobisomem ficou muito conhecido. Exactamente o contrário que ele queria. Mas eu não me importava. O que interessa que estava a ficar cada vez mais rica. E aos poucos a minha fama aumentou. Comecei então a escrever livros. E descobri que até tinha jeito. Escrevi cada vez mais e os meus livros cada vez mais vendidos. Escrevi imenso depois da experiência que vivi e fui condecorada pela Rainha pelos meus livros serem tão profundos. E tudo começou graças a uma história sobre um lobisomem. E, agora, finalmente percebo.

“O azar de uns é a sorte de outros”

Susana Lage, nº24, 7ºC

Marta Sousa, nº16, 7ºC